Julián Peralta

História

O que é o tango?

Há algum tempo, Julián Peralta respondeu que o tango é uma música descrita como parte de um gênero caracterizado pelo uso de determinados modelos de acompanhamento.

Hoje em dia, sua resposta é muito mais profunda: o tango é uma filosofia de vida, diz. E como o seu dia a dia parece ser coerente com sua declaração, fica o benefício da dúvida.

Julián Peralta nasceu na Grande Buenos Aires. Irmão do meio de três filhos, todos músicos, cresceu na zona sul da Grande Buenos Aires, foi à escola pública e militou no centro de estudantes. Começou tocando rock e jazz, que era o mais natural na sua época e, de repente, um dia sentiu vontade de tocar tango. Assim, de repente. A anedota pode ser lida em cada uma das notas e entrevistas que lhe foram feitas até agora. Vamos repeti-la: mexendo em fitas num setor de promoções “leve 3 e pague 2”, faltou uma fita para completar a promoção e aí encontrou a Orquestra de Aníbal Troilo. Foi chegar em casa, por a fita para tocar e se apaixonar pelo tango para sempre, em um único passo. A partir daí, a ideia de montar uma orquestra típica começou a rondar em sua cabeça e, enquanto se mexia no ritmo da “cumbia” – o que lhe permitiu independência econômica (sim, Peralta foi tecladista de cumbia e virou noites e noites de “cumbiódromos y bailantas”) -, ia esboçando os tangos para sua orquestra.

O começo teve a ingenuidade característica de todo início: a inexperiência, a ansiedade e o desejo de avançar. Desgravações, músicos que vão e voltam, partituras velhas mal escritas, dedos mal colocados sobre o piano, conseguir músicos… Guitarristas brotavam de todos os lados naquela época, mas bandoneonistas e violinistas e músicos jovens a fim de tocar tango, havia poucos e não estavam conectados entre si.

O tango estava chegando para ficar, abrindo passagem no meio de grupos de fora que, com a paridade dólar e peso argentino, estavam ao alcance de todos. Avançou e avançou até que se instalou. E Julián foi talvez, seu entusiasta mais importante.

O que sobrevive. As formas boas. As pessoas que apoiam os movimentos

Temos que dizer, antes de continuar, que Julián é naturalmente um homem que está em constante movimento. Ele se mexe e mexe também o que há ao seu redor: o ar, a música, as pessoas. Desde o principio compreendeu com absoluta consciência que para as coisas fossem para adiante era necessário que outros também empurrassem. A “coisa”, esse carro em ruínas, com os pneus furados, mas com uma sólida estrutura que pedia para sobreviver e para ser consertada. Então gestou essa primeira oficina mecânica que foi “La Máquina Tanguera”, uma espécie de parceria de músicos que apenas se iniciavam no tango, mal liam partituras, mal afinavam suas cordas e mal poupavam para comprar um bandoneón. Somaram ao esforço todos aqueles que tivessem uma mínima inquietude. Na dúvida: está dentro. Se juntaram assim várias orquestras que começaram por seu processo de aprendizagem (sem saber) a serviço do desenvolvimento e o resurgimento deste gênero popular. O tango, coisa de velhos, coisa de excêntricos ou coisa de velhos excêntricos. É verdade que isoladamente tinham surgido alguns grupos como “Tangata Rea” e “El Arranque”, porém da individualidade não poderia decolar o movimento que estava vindo. Houve então uma mudança radical na paisagem da cidade de Buenos Aires. “La Máquina Tanguera” era o ponto de encontro, de lugar de partida para todos os que estavam ingressando aos poucos no gênero. Quiçá essa repetida anedota de Peralta mexendo entre discos de jazz e encontrando a orquestra de Troilo tenha a magia dessas casualidades nas quais não acreditamos e nos sirva de argumento para explicar o que segue. Descobrir que aquela típica de Troilo tinha a complexidade e a simplicidade das boas construções, que a música soava bem, que se ouvia todos os instrumentos, foi o princípio para as perguntas que logo foram encontrando respostas em aulas de piano, contraponto, harmonia, orquestração e muitos eteceteras.

Resumo: um grupo de gente jovem que tinha o funcionamento de um clube de rockeiros, com a profundidade de estudo de um clube de nerds e o burburino hormonal de um clube de adolescentes “on fire full time every day” (a todo vapor, todos os dias). De qual outro lugar iria ressurgir o tango senão desse inferno?

No momento certo – As condições dadas

Cumprimentar ao chegar… O carro em ruínas começou a recuperar movimento e cada um dos integrantes de “La Máquina Tanguera” foi buscando seu próprio rumo. Aprender a funcionar como grupo foi outra grande tarefa das diferentes orquestras. Algumas se saíram bem e outras nem tanto.

Julián termina de consolidar nessa época a “Orquesta Típica Fernández Fierro”. Arranjos de velhos tangos e um forte apelo visual desarrumado e jovem foram seus principais traços. Dentro da Fernández Fierro, Julián escreve seus primeiros tangos: “Waldo”, “Mal arreado” e “Punto y branca” (este último titulado por seu pai, Enrique Peralta, um fã de carteirinha de tango e cantor amador que desperta paixões).

Saudar ao ir embora… Julián se despede da Fernández Fierro no verão de 2005. A orquestra continua seu caminho e ele também. Resumiremos que as condições materiais estavam dadas assim como a maturidade de ambas partes para esta separação e posterior avanço de novos projetos.

 Nesse mesmo verão começa “Astillero”, praticamente em um final de semana, com a clara ideia de tocar apenas tangos novos, e com pouquíssimas novas composições na manga.

Com “Astillero” Julián monta “La Milonga en Orsai” (a Milonga – baile de tango – Impedida), um espaço para o encontro de novos grupos, dançarinos, atores e pessoas inclinadas à noite e à musica. Passaram por este espaço uma infinidade de orquestras que tocavam ao vivo, ministraram-se aulas de dança de tango e também criou-se um culto pela marca de “fernet” (bebida italiana muito difundida na Argentina) que nunca quis patrociná-lo (até agora, porém, nunca se sabe…). Julián continua movendo ar, música e pessoas ao seu redor.

La proposta de Astillero é muito mais audaz artisticamente que qualquer outro dos anteriores projetos de Julián. Poderia sair tudo muito bem, ou não. Fazer nova música, deixar de ter a dança como apoio fundamental da música, aprofundar na complexidade das composições sem se afastar do desfrute do espectador, não era tarefa fácil. Encarar um trabalho de letras que pudessem representar à nova geração sem ser modernos nem dar vergonha, foi também complicado. Diz Julián: “tínhamos que escrever a música que gostaríamos de ouvir. E somos difíceis para nos contentar”. Tinha, além disso, que convencer à velha (Julián tem a sua mãe como termômetro do público: se a Marta gosta é porque vai funcionar). Isso era o pior. Porque de Édipo ninguém está a salvo e pelo ouvido exigente da “mamma”, que de tanto ouvir música virou expert.

Astillero sai vitorioso da jogada. O carro já anda direitinho e sem ajuda. Nada de rebocar nem empurrar. Sozinho sobre suas quatro rodas, o tango começa a avançar.

A escola e o teatro. Nasce o Goñi

“Milonga en Orsai” como ponto de encontro ficou pequena para o desenvolvimento do projeto “Astillero” (palavra que em português significa Estaleiro). Era muito forte a necessidade de montar uma escola de música de tango para conter, guiar e ajudar a crescer os novos músicos que se aproximavam com inquietudes. O começo foi aos poucos, com cinco alunos. Aulas de instrumento, de arranjos… Também aos poucos, os mesmos alunos foram marcando o caminho a seguir com suas necessidades. Surgiram grupos de orquestra típica, violões, cordas, sopros… Somaram-se aulas de composição e um monte de professores que aportaram para o crescimento de uma variedade de novos músicos e grupos. Ficou pequena também a primeira sede da escola e foi preciso buscar um novo espaço que também permitisse que os alunos tivessem um palco onde desenvolver e expor seus projetos ao público. Surge então o “Teatro Orlando Goñi”, espaço que tem como eixo fundamental a divulgação do novo tango.

Um sistema – O libro

Julián entende que o processo realizado por ele e todas as pessoas que integraram a “Máquina Tanguera” para aprender os elementos do gênero, necessitavam de uma simplificação e de uma possibilidade de transmissão direta. O escasso material teórico sobre música de tango, motivou-o a encarar o trabalho do livro. Serve-se como guia da lista de músicas que apresenta na sua entrada como docente na “Escuela de Música Popular de Avellaneda”, onde ensina matéria de Elementos Técnicos do Tango, cargo que o famoso músico e docente Rodolfo Mederos deixara vago. Pela dificuldade em encontrar profissionais à altura e pela insistência e teimosia, Julián consegue preencher a vaga (vale esclarecer que na sua tentativa de ingressar na mesma escola como aluno, tinha sido reprovado e levou um “0” –zero, sim, zero- na prova prática de piano).

Julián é um cara solidário. Soube ensinar e o continua fazendo, com a convicção de quem escolhe a docência. Duro, generoso, paciente, acompanhou um a um seus alunos até a borda do abismo. E foi quem os empurrou, obrigando-os a voar ou se espatifar no chão, cada um segundo suas vontades e coragem. Talvez demasiado exigente para seus alunos detratores, quem conseguiu compreender seu método o admira e o considera como um guia. Onde há amor há ódio, fazer o quê?… Mais de um aluno já odiou seu senso de humor. Dizem as más línguas que cansou de receber advertências e denuncias por suas piadas ruins…

A verdade é que seu livro “La Orquesta Típica – Mecánica y Aplicación de los Fundamentos Técnicos del Tango” virou bibliografia de cabeceira de quem quer que tenha a intenção de estudar tango seriamente.

Agora e depois

Aprofundar-se nas viagens que Julián tem realizado pelo mundo apresentando discos, ministrando aulas, ensaiando e tocando com prestigiosas orquestras do exterior, é coisa entediante que deixaremos para quem gosta de listas. Diremos somente que Julián foi o motorista, talvez, o condutor desse carro que apenas se mexia. Sob seu comando avançam os cavalos e é carroceiro que sabe descer para tirar o carro do brejo, que sabe empurrar quando a coisa encalha e sabe festejar também as conquistas e as chegadas.

Julián começou sempre do nada. Construiu a partir de ruínas, de escombros, cada um dos seus projetos.

Este carro tangueiro, que atravessou portos e geografias, que chegou a um sem fim de lugares inimagináveis, tem sempre o melhor pretexto para o movimento. Mais do que o final, o descanso e a chegada, o carroceiro deste carro prefere sempre o marco zero, o começo, a linha de partida.